MAYRA, MAYRA

crônica publicada em 26.04.2020, no Facebook



Não tinha sequer idade para entender sobre minha atração por mulheres quando a vi pela primeira vez, havia só a timidez quase incompreendida de um menino de pouca idade, que fez recolher-me em algum cômodo da casa no dia que ela apareceu para encomendar uma roupa com minha mãe, que na época, além de dar aulas, costurava algumas peças para conhecidos.

Desde de nova, ela já tinha uma desenvoltura ausente em todas as crianças da minha idade, sendo então inevitável o nascimento de uma das minhas primeiras paixões de menino – ainda que isso significasse apenas me esconder quando ela passava na rua ou observá-la de uma distância segura durante o recreio na escola.
Por óbvio, eu não era o único a me sentir atraído pelas suas feições precoces de mulher. Mesmo tendo a mesma idade que ela, me sentia um bebê diante da confiança e do desembaraço que ela carregava com sua presença, atraindo interesses de homens muito mais velhos do que eu. Diante de tamanha concorrência, ou por motivos que não me recordo, desisti do romance, preservando ainda certa atração.
Mais velhos, já na quinta série – talvez por um certo destaque que tive em um campeonato no colégio –, finalmente consegui chamar sua atenção, contando ainda com a sorte de morar próximo à casa dela. Em uma das diversas brincadeiras com as crianças da nossa rua, desenhou-se então a oportunidade de beijá-la durante um pique-esconde. Mas, o que era a realização de um sonho de infância, tornou-se um dos meus maiores desafios daquela idade; pois, apesar de já estar tudo combinado e todos os colegas trabalhando em função desse momento, seria meu primeiro beijo e eu não tinha a menor ideia de como fazer isso.
Com apenas um fraco treinamento no dorso da mão – como faziam a maioria dos moleques sem experiência naqueles tempos –, o beijo na boca de língua, tão esperado, agora me fazia tremer as pernas. Essa insegurança, tão comum, mas confessada com raridade, só acabou quando nos abraçamos em um monte de areia na construção do lado da minha casa. Inicialmente, não pareceu tão difícil, ela beijava muito bem e eu apenas segui o fluxo. O problema, na verdade, foi quando o beijo acabou. Sem saber o que fazer e tomado por uma imbecilidade dos filmes de sessão da tarde, simplesmente fechei os olhos e fingi um desmaio, sendo amortecido pela areia atrás de mim. Só me levantei depois de entreabrir os olhos e confirmar que todos já tinham saído depois de constatarem minha total falta de talento para a dramaturgia. Essa lembrança sempre foi motivo de boas gargalhadas, depois de nos tornarmos bons amigos durante o ensino médio.
Essas foram as lembranças que me acometeram assim que soube da sua morte. Um infarto aos trinta e um anos de idade tirou a vida dessa grande amiga. Depois de me desvencilhar do sentimento de culpa por não vê-la há tantos anos, mesmo morando a poucos quilômetros de distância, me entristeci realmente por não ter a mínima ideia das dificuldades que ela vinha enfrentando. A insanidade política que nos acometeu, tem contribuído muito com meu auto isolamento desde muito antes do coronavírus. Por consequência, me afastando de pessoas que realmente merecem distância, me distanciei também de outras que mereciam uma reaproximação nesses tempos tão loucos.
Agora, ainda refletindo sobre esse acontecimento, lembro que durante nossa adolescência na pequena cidade de Frei Inocêncio, ela – com sua personalidade intensa e autêntica – sempre contestou com suas atitudes a moralidade hipócrita tão comum das pequenas localidades, ainda que não exclusiva delas. Muitas vezes julgada por fazer nada mais do que a maioria dos homens faziam, sofreu a duras penas a dificuldade de simplesmente ser uma mulher que não se limitou – a torto e a direito – a se enquadrar nos padrões tradicionalmente estabelecidos.
Essa característica dela me remete aos melhores personagens de toda literatura que tive acesso até hoje. A sinceridade de suas contradições, a complexidade de seus sentimentos, lhe alça ao patamar de grandes construções da personalidade humana, ainda que distante dos modelos elencados como louváveis pela maioria das pessoas. Porém, em uma sociedade que escolhe um ser desprezível e repugnante como representação mitológica de seus anseios e paixões, se distanciar desses ideais hipócritas só dignifica os dissidentes. Estamos juntos nessa, sempre estivemos.
Queria ter tido a oportunidade de uma última conversa, dar boas risadas relembrando aquele desmaio, até hoje sem explicação. Falar sobre minha vida, compartilhar sofrimentos, dores, frustrações, algumas vitórias e a certeza de que as respostas não se encontram em promessas fáceis de livros de autoajuda ou na resignação inconsciente e alienada a certas crenças. Partilhar com ela tantos erros meus, tantas escolhas equivocadas que fiz; quem sabe até a confissão de uma infâmia ou quem sabe de uma covardia, dividindo com Fernando Pessoa seu cansaço dos “semideuses” – esses super-humanos fechados em uma falsa ideia de perfeição quando o assunto é falar mal do outro. Como diz o poeta lusitano, protestando contra essa falta de humanidade: “Onde é que há gente no mundo?”.
A idealização da mulher – que sofre dobrado por tudo isso – tem algo de muito perigoso e nefasto. Aquelas que se afastam minimamente desses limites, como ela muitas vezes se afastou, sofrem com a pressão silenciosa dessa ideia abstrata. Por isso, vou sempre lembrar da Mayra como a Maria de Milton Nascimento que – com sua risada fácil e alegria contagiante ou com seu pranto solitário diante das intempéries da vida – retratou muito bem a complexidade da existência, essa mistura ininterrupta de dor e alegria.

Lucas Lima

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