QUANDO O BOM MALANDRO É RIFE
crônica publicada em 28.07.2019, no Facebook
Do ponto de ônibus, perto de um barzinho onde os frangos, exibidos e assados, exalam o cheiro do almoço de domingo, ouço um dos sons mais característicos de uma manhã dominical enquanto espero o coletivo para o centro da cidade. “Malandro é malandro mesmo e o otário é otário mesmo”, alertava do som do bar, Bezerra da Silva, enquanto eu enviava uma mensagem aos amigos que já me esperavam na praça dos Pioneiros. Marcamos de chegar a tempo de observar melhor, embora não sem dor, a manifestação de apoio ao transloucado governo federal.
Ao descer no ponto em frente à rodoviária, já notei a movimentação de admiradores do Messias em automóveis que desfilavam na Marechal Floriano com buzinadas e bandeiras do Brasil. Cheguei na praça a tempo de ouvir a fala de um dos líderes a explicar pautas e justificativas pra todo aquele furdunço — mais parecido com um culto religioso do que um ato político.
Passado algum tempo, se juntou a nós um casal de amigos e, vendo uma mulher num local tão pouco higienizado, romantizei mentalmente que ali seria um bom teste pra alguma possível namorada. Pois, a mulher que bebesse cerveja sem reclamar num lugar com cheiro de bosta de galinha, sem dúvida não mereceria ser xingada de patricinha.
Bem no ponto de encontro, numa barraca improvisada que vendia cerveja e espetinho, entre aglomerados de verdes e amarelos, achei meus amigos e bebemos três ou quatro cervejas enquanto víamos centenas de pessoas numa espécie de delírio coletivo. Assistimos ao cortejo de horrores, achando graça de alguns que olhavam meio desconfiados para os quatro barbudos destoantes daquela pitoresca imagem patriótica, semelhante às comemorações de alguma vitória da seleção na Copa do Mundo, ainda que sem motivo algum pra tanta alegria.
Ao fazer algum comentário, tomávamos cuidado para nenhum estranho ouvir. Contudo, tive receio de uma expulsão coletiva quando um de nós soltou um “idiota”, num raro instante de silêncio e logo uns cinco nos olharam desconfiados. Quase fingi ser um olavista para contextualizar o adjetivo, buscando na minha cabeça alguma ofensa ao “marxismo cultural”, mas era apenas impressão minha. Medo, talvez. Afinal, apenas bebíamos cerveja ao redor da palhaçada, sem ofensa direta ao dono do circo.
Enquanto cantavam o hino do Brasil, me dei conta do quanto esse patriotismo às avessas me fez desgostar de nossa canção nacional. Tanto da melodia quanto da letra, a começar pelo “ouviram do Ipiranga às margens plácidas”, que esconde, com floreios e mentirinhas históricas, uma cena muito menos louvável, com direito a dor de barriga e diarreia imperial, além do desconforto de dias de viagem no lombo de uma mula.
Hoje, na minha humilde opinião, a música que deveria representar nossa pátria torta e de autoestima baixa deveria ser “Brasil Pandeiro” dos Novos Baianos... “Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar” compõe um dos poucos versos da música brasileira que consegue sambar em cima do nosso complexo de vira-lata, esse sentimento de inferioridade que temos com o “primeiro mundo”, principalmente em relação aos americanos do norte.
Nascido em Governador Valadares, onde muitos de nós temos um tio, um primo ou um conhecido qualquer que foi fazer a vida nos Estados Unidos e não se cansa de exaltar as vantagens de lá, talvez eu sinta falta de versos que deem melhores contornos a nossa autoestima de vira-lata.
Comentávamos sobre isso durante o trajeto até o Mercado Municipal, depois da praça esvaziar-se de cores e vê-la voltar à sua perene tranquilidade de um domingo de céu aberto e com poucas nuvens.
Chegamos ao Bar do Ica por volta de uma da tarde, atrasados o suficiente para não encontrar nenhum lugar no disputado beco das hortaliças, nem nas poucas mesas dentro do estabelecimento. Como o bar possui duas entradas, cada uma em um corredor diferente do mercado, nos restou o quase vazio beco dos frangos, com seu cheiro forte, mesmo com os aviários já de portas fechadas.
O beco dos frangos, além de um nariz mais resistente, nos rendeu uma boa amizade de boteco, dessas que a prosa se desenrola como se continuássemos um papo mal acabado do dia anterior. Sentado em uma mesa ao lado da nossa, sozinho, bebendo uma cerveja Serrana, estava um homem de meia idade, um pouco calvo e de olhar esperto. Se apresentou como Esquema-Tático ao entrar com jeito em nossa conversa, depois de algum comentário que fizemos sobre a picaretagem dessas igrejas neopentecostais que se aproveitam da fé de pessoas mais simples:
— Se deixar, um conhecido meu compra até água poluída do Rio Doce se o pastor dele falar que é milagrosa.
À medida em que o papo fluía, percebi que ele chamava todos nós pelo seu próprio apelido: “Esquema-tático”. Sem falar que usava o termo em vários outros sentidos, como uma espécie de curinga de baralho. Colocava “esquema-tático” até duas ou mais vezes na mesma frase, como quando explicou um de seus métodos de recuperar bicicletas furtadas:
— Ô Esquema-tático, prestenção aqui, o esquema-tático é o seguinte: primeiro cê tem que fazer o esquema-tático com os informantes, eu tenho os meus espalhado por aí. Quando os cara vão trocar a bicicleta no esquema-tático deles, aí já me fazem o contato do Esquema-tático vacilão, dependendo, já fica detido por lá mesmo... — contou enquanto gesticulava com as mãos, o que facilitava a compreensão de cada sentido de “esquema-tático” utilizado.
Quando todos nós já havíamos abreviado seu apelido pra “Esquemático”, criando certa intimidade com o personagem, ele nos confessou que preferia beber no corredor dos frangos porque o cheiro trazia memórias de sua infância, vivida no campo, com a simplicidade da roça e o convívio com os bichos. Por isso, mesmo quando não encontrava algum amigo para dividir a cerveja e esticar a prosa, todos os domingos bebia religiosamente suas três ou quatro cervejas, acompanhadas do famoso joelho de porco da Dona Socorro, sentado naquela parte pouco convidativa do mercado.
No final do expediente, entre uma das diversas saideiras, discutíamos sobre a possibilidade de um futuro pro Brasil. Momento em que o César – o garçom mais gente fina da cidade – começou a batucar um samba nas caixas vazias de cerveja, enquanto não era solicitado em nenhuma outra mesa.
De um jeito manso, embalado pela pouca sobriedade deixada pelo álcool das Brahmas debaixo da mesa, minha mente foi se afastando do assunto e passei a prestar mais atenção àquele batuque improvisado, com sua cadência ritmada e melodia conhecida. Aos poucos, fui levado até o samba do Bezerra da Silva que tocava mais cedo no barzinho perto do ponto de ônibus. Então, ainda imerso nos lugares e pessoas que havia observado naquele dia, num raro lampejo de sabedoria popular, me toquei de quem são os malandros e quem são os otários nessa estória toda.
Lucas Lima
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