MERGULHO DO ATRASO
crônica publicada em 06.09.2020, no "Jornal da Cidade" de Governador Valadares.
Uma
das coisas que mais gosto no trânsito valadarense (talvez a única) é descer a
Avenida Minas Gerais sentido centro, desde o seu início ali no Cidade Nova. O Tobogã – como eram chamadas aquelas
subidas e descidas próximas ao Morada do Vale – já proporcionou muito frio na
barriga de quem passava mais acelerado por ali. “De novo, pai! De novo!”, era o que eu sempre pedia quando criança,
depois de sentir a sensação vivida apenas nos brinquedos do parque Trombini.
Embora
essa diversão tenha acabado há muito tempo, graças à instalação de semáforos e
radares nos dois lados da avenida, quando subimos o morro do Country Clube
podemos contemplar uma bela visão do horizonte, um verdadeiro cartão postal da
cidade. E essa vista fica ainda mais bonita ao cair da tarde, quando os prédios
já começam a ser tomados pela penumbra da noite e apenas a Ibituruna recebe os
últimos raios de sol do dia.
Logo à
frente, já descendo para pegar a rotatória da praça XV de Novembro – que ficou
mais conhecida pelo nome da famosa pizzaria inaugurada na década de 70 pelo
casal Waldir e Nelly –, vemos a parte mais plana da Minas Gerais, antes dela
ser cruzada pela linha do trem. Desacreditada economicamente em tempos
passados, esse pedaço da avenida possui hoje um comércio fervilhante, com
supermercados, farmácias, hotéis e o Martinelli, vendendo sua cerveja gelada
até altas horas da madrugada.
À
noite, a iluminação dos postes nos canteiros centrais dá um certo ar de pequena
metrópole para esse lugar onde só havia mato algumas décadas atrás. Porém,
ainda muito distante da parte mais rica da avenida, que se inicia ali no Ilusão
Esporte Clube, com seus imóveis valorizados, suas pistas amplas e um trânsito
mais organizado.
Acredito
que o excesso de contornos prejudique o fluxo no lado mais humilde dessa avenida, já
que muitas vezes somos obrigados a esperar dois ou mais carros, que raramente
sinalizam, convergirem para o sentido oposto, honrando o tradicional hábito
valadarense de não dar seta ao fazer a curva. Além disso, é tarefa complicada
manter-se paciente na pista da esquerda para poder entrar no mergulhão, pois
volta e meia assistimos aos apressados que cortam descaradamente a fila de
carros pela direita e, lá na frente, forçam a entrada dando a seta - usada apenas nesses instantes de atrevimento.
Outro
dia, enquanto eu atravessava o mergulhão – bem no horário de pico e em cima da
hora para uma consulta médica –, duas motocicletas se chocaram fortemente
poucos metros à minha frente, o que me fez esperar cerca de vinte minutos até
as coisas voltarem ao normal, parado bem embaixo da Vitória-Minas, por onde
passam diariamente os minérios rentáveis, enquanto os rejeitos viajam não muito
distante dali, mergulhados nas águas do rio, sem dono e sem doce.
Os
motoqueiros acidentados (dois entregadores de aplicativo) permaneceram imóveis;
mas, logo alguém fez sinal de positivo, indicando que estavam vivos. Diferente
de suas motos, que obstruíram os dois lados da pista com um aspecto de perda total. O local foi tomado por curiosos sem máscaras, que bebiam nos bares lotados ao redor,
submersos na inconsequência dos tempos atuais.
Distraído
com toda aquela confusão, demorei alguns minutos para reparar nos rostos desenhados nas paredes do mergulhão, feitos em homenagem à personalidades históricas da cidade, cujos nomes eu não tinha
conseguido ler por sempre passar mais rápido por ali. Lendo os da minha
esquerda, só reconheci os que as patentes – já tão bem associadas aos nomes –
me fizeram mergulhar nas histórias de um passado sombrio da cidade. “Que
retrocesso...”, repeti para mim mesmo, perdido em pensamentos distantes, até
que o barulho ininterrupto de uma buzina me fez emergir de volta à realidade do
amável trânsito valadarense.
Meu
lapso foi de poucos segundos, mas o suficiente para ser lembrado
gentilmente de que a pista tinha sido liberada. Arranquei o carro mais que depressa,
completamente atrasado pra consulta.
Lucas
Lima
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