AOS MEUS OLHOS QUADRA, BOLA, COVID-19

crônica publica em 31.03.2020, no Facebook



A solidão do confinamento vem produzindo uma série de saudades de coisas que gosto fazer em tempos de normalidade, mas, na impossibilidade de aglomerações, tenho apenas reprimido essas vontades, dispensando a maioria delas para algum lugar perdido em minha mente.

Além do torresmo do Bar do Dilo, não há um dia sequer em que eu não pense em jogar futebol. Até minhas pernas, com suas próprias memórias, volta e meia chutam alguma coisa pela sala, driblando algum dos cachorros e acertando gols imaginários em pés de mesas e cadeiras.
No entanto, essas pequenas doses de diversão não dão cabo de todo desejo acumulado. Sinto falta de uma partida bem jogada, com a pressão de ganhar e não esperar a próxima partida do lado de fora. Mesmo que as vídeo-aulas de yoga feitas no quarto não me deem o condicionamento necessário para isso.
Assim, com o coronavírus causando um caos social e futebolístico em minha vida, tenho sonhado constantemente com domínios de bola, dribles, passes bem feitos e até gols, que nem tenho o costume de fazer. Numa noite dessas, num sonho, visitei uma velha quadra de futebol de salão da minha cidade natal, batizada carinhosamente de "Breuzin" por seus usuários, pois, seus refletores nem sempre contribuíam com as peladas noturnas de quem tinha somente esse horário para jogar.
Essa quadra sempre pertenceu à prefeitura de Frei Inocêncio, mas era utilizada pela escola estadual onde estudei a partir da quinta série. Escola essa localizada no terreno bem ao lado, separada apenas por um muro que eu e meus amigos éramos peritos em saltar. Durante a semana, a quadra era palco das aulas de educação física e eventos esportivos do colégio. Aos sábados e domingos era aberta ao público em geral, para desespero de algumas mães (como a minha), pois a molecada passava o dia inteiro por lá, muitas vezes sem almoço.
Meu primeiro jogo “oficial” nessa quadra foi em um amistoso entre as duas turmas da quinta série do vespertino. Quinto ano um versus quinto ano dois. Até então, nunca tinha jogado com torcida, que nesse dia era formada por todas as meninas das duas classes, o que me causou um frio na barriga descomunal. Extremamente tímido e com medo de não jogar bem, pondo a perder qualquer chance de dar o meu primeiro beijo (era isso que mais me preocupava), acabei jogando bem abaixo do que conseguia fazer nos finais de semana, em que a pressão estava só em fazer dois gols antes dos adversários para não ficar esperando por horas outra oportunidade, pois sempre haviam quatro ou cinco times de fora. Com isso, não suportei a pressão da arquibancada somada à pressão da puberdade, fomos derrotados por dois a um e a possibilidade de perder o “bevê” (boca virgem), como prêmio da vitória, foi por água abaixo.
Ainda na quinta série, foi organizado um campeonato na escola envolvendo várias modalidades, a ser disputado entre os alunos do ensino fundamental (5ª à 8ª à época). Os organizadores separaram as turmas em três equipes – azul, branco e vermelho – e, como haviam três turmas de cada série, todas as turmas “um” (5ª.1, 6ª.1, 7ª.1 e 8ª.1) ficaram na equipe azul e, seguindo a mesma lógica, as turmas “dois” e “três”, nas equipes branca e vermelha, respectivamente. Acontece, que havia uma divisão muito clara de idade entre as turmas um, dois e três, de forma que o time de futsal da equipe vermelha ficou absurdamente mais forte, seguido da branca e por último a azul, onde eu, calouro da 5ª.1, me encontrava.
Nosso primeiro jogo foi contra a equipe vermelha, e de cara já me colocaram no banco, imaginei que alguém teria comentado sobre minha pífia atuação no amistoso contra a 5ª.2, então aceitei numa boa. Até porque, a arquibancada estava lotadíssima, o evento foi aberto ao público e até o pessoal do ensino médio marcou presença para assistir aos jogos. Sem contar que no time de vermelho apenas dois não tinham barba na cara, ouvi dizer inclusive que um deles já era pai. Com aquele mesmo frio na barriga do amistoso, o banco de reservas se tornou um lugar muito convidativo.
O time dos barbados era formado pela base do juvenil do Vila Nova, o time de futebol de campo da minha cidade. Na época, eu gostava de assistir esses caras jogarem e agora teria que enfrentá-los, e pior, jogando em um time de pirralhos, pois não conseguimos nenhum representante da 7ª.1 e da 8ª.1, que só tinham nerds pernas de pau. Os primeiros cinco minutos de jogo foram um vexame completo, o time de vermelho fez uns três ou quatro gols com extrema facilidade, nosso time – além de muito jovem – estava totalmente apático, apenas assistia às trocas rápidas de passe, em que sempre sobravam dois adversários cara a cara com nosso goleiro.
A torcida, que se solidarizou com a gente diante da nítida e injusta diferença entre os times, até tentava incentivar aos gritos e batuques: “Azul! (Tum-tum-tum) Azul! (Tum-tum-tum)”, mas meu time mal pegava na bola. Em um dado momento, antes de tomarmos o quarto ou quinto gol, me chamaram para entrar.
Alguns conhecidos meus que estavam na torcida – a maioria alunos e ex-alunos da minha mãe – começaram a me incentivar quando eu tocava na bola, gritando meu nome. Como entrei já com aquela diferença enorme no placar e com a certeza de que não ganharíamos daquele time, passei a jogar sem pressão alguma e, diferentemente do amistoso, tudo que eu fazia dava certo e a torcida se empolgou, dando ânimo também ao meu time, que começou a se entregar mais à partida.
Não lembro direito se fizemos um ou dois gols ou fizemos um e quase fizemos outro, o que me recordo é que a torcida foi à loucura nessa hora e os marmanjos do time vermelho começaram a ficar bravos, com chegadas mais duras e maldosas, que acabaram intimidando aquele nosso início de reação. Ainda é nítida uma cena em que eu tiro um gol em cima da linha, depois de um deles ter driblado nosso goleiro e chutado já saindo para o abraço. Salvar esse gol foi meu ápice no jogo, levando a torcida ao delírio, apesar de não ter conseguido evitar os outros dois gols que tomamos em seguida, selando mais uma derrota minha no colégio.
Porém, desta vez saímos aclamados como verdadeiros heróis de guerra e a torcida adotou nosso time como mascote pelo resto do campeonato. Ficamos fora da final depois de um jogo disputado com a equipe branca, mas a luta e a entrega dentro de quadra nos deixaram conhecidos na escola e, finalmente, acabei recebendo aquele desejado prêmio que o amistoso não pôde me dar, algo meio impossível em tempos de covid-19.
Soube recentemente que o atual prefeito está para inaugurar uma espécie de mercado municipal onde era o “Breuzin”, que foi demolida há alguns anos. Cheguei a ver o terreno vazio, sem a arquibancada e as traves, onde mais ninguém vai marcar um gol. A escola, há muito tempo já tem a sua própria quadra, assim como a prefeitura, que também construiu uma coberta, bem próxima à antiga. Dessa forma, hoje, as crianças de lá não precisam contar com o tempo firme para jogar bola, desenhando o sol na rua para espantar o tempo fechado, como sempre fazíamos em época de chuva. Na maioria das vezes, quando o ritual dava errado, apenas íamos embora tristes para nossas casas; mas, se o tempo abria, não havia quem não levantasse as mãos para o céu e em seguida fizesse uma reverência pagã ao sol desenhado com dois olhos e um sorriso, reforçando ainda mais a crença para futuras necessidades.
Contudo, as crianças de hoje, em meio a essa crise inédita em nossa sociedade, não podem (ou não poderiam) sequer sair de casa para correr atrás de uma bola junto de seus amigos. Há um risco invisível lá fora e ainda que haja os que minimizem, pode destruir a vida de muitas pessoas e de muitas famílias, restando apenas lembranças como essas de um lugar tão especial na minha infância e que hoje não existe mais.
Seria até poético solucionar todo esse caos com alguns rabiscos infantis no chão de terra batida, como fazíamos para espantar a chuva. Mas, é algo que só aconteceria num sonho bom, desses que a gente acorda e fica triste ao perceber que estava apenas sonhando. Sigamos quem puder em casa.

Lucas Lima

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