HÁ METAFÍSICA BASTANTE NO OLHAR DE UMA CRIANÇA
crônica publicada em 18.07.2020, no Facebook
Ainda que as letras já estivessem
presentes no meu imaginário, por conta dos livros do meu pai espalhados pela
casa, foi a tia Raquel quem me mostrou o caminho das pedras, entre vogais,
consoantes e suas milhares de interações possíveis.
Comecei a frequentar a escola já
semialfabetizado. Minha tia, que dava aula para os três primeiros anos
escolares – na minha época conhecidos como “prezin” –, me ensinou a formar algumas sílabas, ainda com três anos.
Sem dúvida foi um privilégio ter
aulas particulares com quem veio a ser a minha primeira professora. As
atividades e exercícios passados em sala já me eram familiares, nos
dois sentidos da palavra. Difícil foi me acostumar com todos aqueles
pequenos desconhecidos, que nunca vi nos almoços de domingo, chamarem de “Tia” a tia que era só minha.
Guardo com carinho lembranças das
aulas ao ar livre, do gramado que havia no fundo da escola, sem falar das
árvores que, mesmo sendo proibido subir, vez ou outra burlávamos essa regra na
hora do recreio, arriscando uma escalada enquanto as supervisoras não estavam
por perto.
Ainda que eu não fosse dos mais
obedientes, era um menino pacífico na maior parte do tempo. Contudo, puxo na
memória uma confusão em que me meti quando bati covardemente no Elói, o menino
mais velho e corpulento dos três “prezinhos”, que não perdia a oportunidade de
agredir todo moleque mais fraco do que ele.
Mesmo ele sendo a personificação do
Joey Caruso, aquele bad boy mirim do “Todo Mundo Odeia o Chris", a
vingança dos oprimidos veio com resquícios de crueldade - ele não merecia
tanto.
Um dia, no final do recreio, cansados
dos seus abusos e desmandos, conseguimos segurar nosso malfeitor e, quem sabe
inspirado na cena do lobisomem em “Deu a louca nos monstros" – que passava
quase toda semana no SBT –, alguém gritou: “Chuta o saco! Chuta o saco!”.
Então, me lembrando dos cascudos e dos tombos que ele sempre me dava, chutei
como se fosse o Taffarel ligando um contra-ataque da seleção brasileira com o
Romário e o Bebeto, mas, ao invés de sobrevoar o campo até a intermediária
do adversário, Elói caiu no chão com as mãos nos países baixos e gritando de dor.
De forma solidária e leal, quando a
mãe dele apareceu na escola procurando o agressor do seu “Eloizinho",
dividimos a culpa entre os integrantes do complô. Foi o suficiente pra escapar
do coro lá em casa, mas o castigo de uma semana sem jogar bola doeu muito mais
que algumas bordoadas do cinto do meu pai.
Fora esse caso isolado, mantinha
conflitos constantes com meu arqui-inimigo Raulf, que era uma espécie de falso
vilão, um personagem muito mais complexo e interessante que o Eloizinho, o
tirano fajuto da mamãe. Trocávamos socos por bobagens, mas havia um respeito
mútuo entre nós. Da minha parte, porque achava seu estilo solitário e revoltado
muito parecido com os heróis mais sombrios dos quadrinhos. Já da parte
dele, realmente não sei, mas deve ser porque eu era o único menino da nossa
idade que tinha coragem de enfrentá-lo, mesmo eu apanhando na maioria das
vezes.
Suspeito que por essas e outras,
minha tia, preocupada com horríveis destinos do seu sobrinho, tentou me levar
pra igreja evangélica. Se a educação não conseguia aquietar meus impulsos, quem
sabe a palavra de Deus não pacificaria minha alma.
Embora louvável a tentativa, nunca me
acostumei com a diferença didática da escola dominical e daquela que eu
frequentava durante a semana. De segunda a sexta, as coisas que eu ouvia eram cheias de encanto. Nos livros, tanto os animais quanto
os insetos falavam, cantavam e ainda davam lições de moral, mesmo que eu
entendesse do meu próprio jeito (como matar uma formiga que agora eu sabia que
estava trabalhando para não passar fome no inverno?). Eu era levado para
outros mundos, outras épocas, era lúdico o processo e absorvia a tudo
brincando.
Aos domingos, ainda que as
professoras se esforçassem, a seriedade do tema não ajudava muito. Havia apenas
um livro, cheio de páginas e letras bem pequenas que, ao lado da nossa salinha
de aula, algum adulto lia trechos alternando o tom da voz. Dentre outras
coisas, afirmavam com convicção: “de onde viemos”, “para onde vamos” e “o
que não devemos fazer para não ir parar naquele lugar”.
Com exceção das pragas do Egito, essa
era a parte que eu mais me cagava de medo, pois, com meu histórico de
desobediência, algumas brigas e uma covarde agressão, eu tinha quase certeza
que minha passagem só de ida praquele lugar já estaria reservada.
A conversão não deu certo, até tentei
a igreja católica tempos depois, levado por um amigo, mas acabei sendo zoado no
catecismo porque eu não era batizado. Aí, alguns tiravam
sarro de mim, me chamando de pagão e falando que: "por não terem derramado uma
aguinha na minha cabeça", eu estaria condenado ao fogo eterno. Atormentado por esse destino e para não chutar o saco de mais ninguém desisti de mais uma
tentativa de salvação.
Por isso, quero hoje me justificar de
algum modo com minha tia, para que ela não pense que sua tentativa de salvar a
minha alma foi de toda perdida, e saiba que as memórias da infância, com as
fábulas e contos de fadas contados por ela na escola, talvez tenham surtido
mais efeito nessa empreitada.
Assim, penso em confessar (sem a culpa costumeira do ritual) que hoje preservo uma fé bem particular. Pois, as palavras que me tocam a alma, me chegam com a ternura de quem explica sem impor qualquer certeza - como nesses versos de Fernando Pessoa:
(Que
mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe
a viver, espontaneamente,
Como
quem abre os olhos e vê,
E
chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E
amo-o sem pensar nele,
E
penso-o vendo e ouvindo,
E
ando com ele a toda a hora.(**)
(**)trecho do poema
“V - Há metafísica bastante em não pensar em nada” de Alberto Caeiro,
heterônimo de Fernando Pessoa.
Lucas Lima
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