crônica publicada em 23.08.2020, no Facebook
Outro dia, uma dúvida sincera de um amigo pouco interessado em política me fez voltar no tempo em busca de uma justificativa. “Mano, na boa mesmo, por que cê é de esquerda?”, ouvi a pergunta e quase me rendi a uma resposta pronta, como se fosse óbvio pra maioria das pessoas que a justiça social é uma pauta historicamente defendida por esse lado da política, ainda que bem distante do ideal.
Não seria mentira se eu falasse que sou de esquerda porque, realmente, entendo que o maior problema do Brasil, e também do mundo, é a desigualdade social. Contudo, não quis levar as coisas pra um debate sociológico e, aproveitando a intimidade, recorri à minha árvore genealógica.
"Mano, o pai da minha mãe, conhecido no Catequese como Afonso Crente, era negro, ainda que as fotos preto e branco tenham esbranquiçado seu rosto. Ele foi criado em uma casa de pau a pique junto de outros tantos irmãos. Quando casou, arranjou um pedacinho de terra, onde cultivava milho, feijão e outras miudezas, mais para inteirar o almoço da família numerosa, que pra fazer algum dinheiro.
Um vizinho dele, fazendeiro renomado da região, começou a deixar sua criação de porcos passar pro terreno do meu avô. Alguns dizem que o tal fazendeiro fazia isso por inveja da popularidade do vô no pequeno povoado. Meu vô Afonso até tentou resolver o problema no diálogo, mas o cara insistia na provocação.
Nisso, já cansado de ser prejudicado, meu vô levantou cedo num dia frio e matou alguns dos porcos do fazendeiro que estavam no seu terreno e doou a carne pra boa parte dos moradores do lugar, que naquele dia comeram com fartura os porcos engordados na pequena plantação. Passado algum tempo, meu avô foi morto a tiros dentro de sua casa, sem chances de defesa, enquanto brincava com sua filha mais nova e deixou sete filhos pequenos para serem criados por minha vó.
Meu avô paterno, José de Souza, mais conhecido por Seu Nenzim, tinha olhos azuis, a pele branca, marcadas por rugas de uma vida inteira de trabalho duro. Conseguiu, com muito esforço, comprar uma rocinha pra morar e tirar algum sustento dela. Acabou abrindo uma venda na entrada da sua terra, onde vendia bebidas e alguns mantimentos. Quando as coisas iam bem (o que era raro acontecer), conseguia comprar na cidade mais próxima, sacos de arroz, feijão e farinha, para revender à granel pros funcionários de grandes fazendas dos arredores.
O lucro era miúdo, mas sua sensibilidade com o sofrimento alheio o impedia de não vender fiado, mesmo quando o cliente já devia com alguns meses de atraso. Ele sabia que o fazendeiro era quem pagava uma miséria de salário, tratando como escravo os vaqueiros e peões que ralavam diariamente pra garantir a sobrevivência da família. Não demorou a falir e, desiludido com o fracasso de seu negócio e outras tantas amarguras da vida, passou a ter problemas mais sérios com o álcool — que sempre foi a fonte de suas maiores contradições. Contudo, foi o fumo, habituado a tragar diariamente, que acabou lhe rendendo um câncer no pulmão e uma morte prematura. Eu tinha dez anos quando ele morreu."
Aproveitando o silêncio do meu amigo, que ouvia atento essas histórias, concluí a prosa respondendo finalmente sua pergunta:
"Eu sou de esquerda porque todo dia "Afonsos" e "Josés" são mortos por essa máquina de moer gente, quando não, são escorraçados de suas terras para se amontoarem nas favelas das cidades, tudo isso com a conivência e a indiferença da direita e seus apoiadores. Os adesivos colados nas caminhonetes quatro por quatro, seja do Aécio ou do “mito" mais recente, só reforçam a certeza de que estou do lado certo — senão de toda a História, ao menos da minha.
Comentários
Postar um comentário