UM LIVRO E UM GARDENAL, POR FAVOR
crônica publica em 11.03.2020, no Facebook
Certa vez, na Biblioteca Municipal de Valadares, ouvi a conversa de dois sujeitos que estudavam numa mesa próxima às estantes enquanto eu procurava uma famosa coleção de crônicas do Rubem Braga. Falavam de técnicas de estudo para concursos, "estou lendo cinquenta páginas de legislação por dia", se vangloriou o que falava mais alto.
Logo depois, juntou-se a eles um outro rapaz e começaram a falar sobre as dificuldades do último concurso da prefeitura. Disperso pela conversa em local tão inapropriado, não achei o livro em uma primeira olhada e decidi procurar outro título de meu interesse, que ficava em outra parte da biblioteca, onde o som da conversa me incomodaria menos.
Encontrada a respectiva obra, voltei à estante decidido a encontrar o livro de crônicas e acabei voltando para perto do trio, cujo protagonista em termos vocais já devia ter lido sua quinquagésima página do dia, pois, em um tom mais exaltado, falava agora de política — ou algo parecido com isso.
"A melhor defesa é um bom ataque! O Bolsonaro tá certo em enfrentar essa imprensa", disse aos gritos o falastrão. "Mas ele fala merda todo dia" retrucou o que havia chegado depois, que pelo jeito era o único que discordava do "palestrinha", pois, o outro apenas concordava com os berros do colega.
Preocupado com minha sanidade mental, abstraí da conversa e foquei na minha busca, falando baixinho para mim mesmo: "Rubem Braga, Rubem Braga..", mas só havia um outro Rubem na prateleira, o Fonseca, aquele que outro dia foi o autor mais censurado na bizarra lista de livros proibidos pelo governo de Rondônia, estado "curiosamente" governado por um apoiador desse presidente que fala merda todos os dias só pra se defender da imprensa, segundo o raciocínio suntzuniano do concurseiro com vocação para pastor da Igreja Universal.
Enquanto contava quantos livros proibidos haviam naquela estante dos Rubens, fui surpreendido novamente por aquele estridente ruído que, destilando uma convicção quase sincera, vociferou: "Todo mundo sabe que o William Bonner e a Miriam Leitão são assumidamente de esquerda, já foi provado que os dois recebem milhões pra dar palestra em universidade federal".
Distraído em minha busca, fui pego de surpresa ao ouvir pela primeira vez uma fake news em formato de áudio. Não resisti e soltei uma risada travada, dessas que a gente dá quando não é hora nem lugar para rir. Percebi de imediato os olhares enfurecidos do boca de corneta e do seu colega, papagaio de pirata. Porém, por sorte, encontrei no mesmo instante o "Rubem Braga: 200 crônicas escolhidas", que estava mal colocado entre "Agosto" e "Feliz Ano Novo", do Fonseca. Mais que depressa, peguei o livro e fugi daquela cena manicomial, retrato da tragicomédia que se tornou o Brasil.
Lucas Lima
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