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Ao casal, com amor

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  A gente costumava dizer que nossa amizade começou ainda na barriga de nossas mães. Quase nascemos juntos, mas, diferente da ordem do Novo Testamento, Lucas veio primeiro que Mateus. Pouco mais de um mês, pra ser exato; e se tem alguma verdade nesse papo de astrologia é que leoninos e librianos formam uma ótima amizade. Estudamos juntos desde o jardim de infância e, quando ele mudou de colégio na 2ª série, não demorei a seguir o mesmo caminho. Eu vivia na casa dos seus avós maternos e não me esqueço do Seu Abelardo me convidando pra tomar café da tarde e de Dona Carminha nos incentivando a ler livros de escritores baianos. Lembrando disso, a vontade é de me sentar ao lado dele na mesa da varanda, ouvindo ele falar “Zé Luca”, toda vez que me chamasse; e agradecer a ela pelo incentivo à leitura, tirando um sorriso de seu rosto ao lhe dizer que li quase todos do Jorge Amado. Mas, enfim, embora esse texto seja pra outro casal, Mateus com certeza aprendeu muito com seus avós sobre a

MERGULHO DO ATRASO

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crônica publicada em 06.09.2020, no "Jornal da Cidade" de Governador Valadares. Uma das coisas que mais gosto no trânsito valadarense (talvez a única) é descer a Avenida Minas Gerais sentido centro, desde o seu início ali no Cidade Nova. O Tobogã – como eram chamadas aquelas subidas e descidas próximas ao Morada do Vale – já proporcionou muito frio na barriga de quem passava mais acelerado por ali. “De novo, pai! De novo!” , era o que eu sempre pedia quando criança, depois de sentir a sensação vivida apenas nos brinquedos do parque Trombini.  Embora essa diversão tenha acabado há muito tempo, graças à instalação de semáforos e radares nos dois lados da avenida, quando subimos o morro do Country Clube podemos contemplar uma bela visão do horizonte, um verdadeiro cartão postal da cidade. E essa vista fica ainda mais bonita ao cair da tarde, quando os prédios já começam a ser tomados pela penumbra da noite e apenas a Ibituruna recebe os últimos raios de sol do dia. Logo à f

BODAS DE PINHO

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crônica publicada em 19.03.2020, no Facebook A exigência, feita por minha mãe, foi que meu pai completasse ao menos vinte e cinco anos para que finalmente pudessem se casar. Com a diferença de quase três anos na idade, a cerimônia aconteceu exatamente um dia depois do vigésimo quinto aniversário dele. Minha mãe, com quase vinte e oito e grávida há quatro meses desse que vos escreve, vestia uma roupa branca de gestante e calçava um all star da mesma cor, mas alguns laços amarelados em seu blusão proporcionavam um discreto requinte para a ocasião. Já meu pai, ainda distante dos ternos e gravatas que um dia fizeram parte de seu cotidiano, usava vestes cabíveis em qualquer situação mais informal, como quem se arruma para uma segunda-feira de trabalho atrás de um balcão. O matrimônio aconteceu na casa em que minha avó materna morava com seus filhos que ainda não haviam lhes dado nenhum neto - o da barriga da minha mãe seria o primeiro - e, respeitando a ausência de crença dela à época, não

AOS MEUS OLHOS QUADRA, BOLA, COVID-19

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crônica publica em 31.03.2020, no Facebook A solidão do confinamento vem produzindo uma série de saudades de coisas que gosto fazer em tempos de normalidade, mas, na impossibilidade de aglomerações, tenho apenas reprimido essas vontades, dispensando a maioria delas para algum lugar perdido em minha mente. Além do torresmo do Bar do Dilo, não há um dia sequer em que eu não pense em jogar futebol. Até minhas pernas, com suas próprias memórias, volta e meia chutam alguma coisa pela sala, driblando algum dos cachorros e acertando gols imaginários em pés de mesas e cadeiras. No entanto, essas pequenas doses de diversão não dão cabo de todo desejo acumulado. Sinto falta de uma partida bem jogada, com a pressão de ganhar e não esperar a próxima partida do lado de fora. Mesmo que as vídeo-aulas de yoga feitas no quarto não me deem o condicionamento necessário para isso. Assim, com o coronavírus causando um caos social e futebolístico em minha vida, tenho sonhado constantemente com domínios de

MAYRA, MAYRA

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crônica publicada em 26.04.2020, no Facebook Não tinha sequer idade para entender sobre minha atração por mulheres quando a vi pela primeira vez, havia só a timidez quase incompreendida de um menino de pouca idade, que fez recolher-me em algum cômodo da casa no dia que ela apareceu para encomendar uma roupa com minha mãe, que na época, além de dar aulas, costurava algumas peças para conhecidos. Desde de nova, ela já tinha uma desenvoltura ausente em todas as crianças da minha idade, sendo então inevitável o nascimento de uma das minhas primeiras paixões de menino – ainda que isso significasse apenas me esconder quando ela passava na rua ou observá-la de uma distância segura durante o recreio na escola. Por óbvio, eu não era o único a me sentir atraído pelas suas feições precoces de mulher. Mesmo tendo a mesma idade que ela, me sentia um bebê diante da confiança e do desembaraço que ela carregava com sua presença, atraindo interesses de homens muito mais velhos do que eu. Diante de tama

HÁ METAFÍSICA BASTANTE NO OLHAR DE UMA CRIANÇA

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crônica publicada em 18.07.2020, no Facebook   Ainda que as letras já estivessem presentes no meu imaginário, por conta dos livros do meu pai espalhados pela casa, foi a tia Raquel quem me mostrou o caminho das pedras, entre vogais, consoantes e suas milhares de interações possíveis. Comecei a frequentar a escola já semialfabetizado. Minha tia, que dava aula para os três primeiros anos escolares – na minha época conhecidos como “prezin” –, me ensinou a formar algumas sílabas, ainda com três anos. Sem dúvida foi um privilégio ter aulas particulares com quem veio a ser a minha primeira professora. As atividades e exercícios passados em sala já me eram familiares, nos dois sentidos da palavra. Difícil foi me acostumar com todos aqueles pequenos desconhecidos, que nunca vi nos almoços de domingo, chamarem de “Tia” a tia que era só minha. Guardo com carinho lembranças das aulas ao ar livre, do gramado que havia no fundo da escola, sem falar das árvores que, mesmo sendo proibido subir, vez o

POR QUE SOU DE ESQUERDA?

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crônica publicada em 23.08.2020, no Facebook Outro dia, uma dúvida sincera de um amigo pouco interessado em política me fez voltar no tempo em busca de uma justificativa. “Mano, na boa mesmo, por que cê é de esquerda?”, ouvi a pergunta e quase me rendi a uma resposta pronta, como se fosse óbvio pra maioria das pessoas que a justiça social é uma pauta historicamente defendida por esse lado da política, ainda que bem distante do ideal. Não seria mentira se eu falasse que sou de esquerda porque, realmente, entendo que o maior problema do Brasil, e também do mundo, é a desigualdade social. Contudo, não quis levar as coisas pra um debate sociológico e, aproveitando a intimidade, recorri à minha árvore genealógica. "Mano, o pai da minha mãe, conhecido no Catequese como Afonso Crente, era negro, ainda que as fotos preto e branco tenham esbranquiçado seu rosto. Ele foi criado em uma casa de pau a pique junto de outros tantos irmãos. Quando casou, arranjou um pedacinho de terra, onde cult